Nuvem fantasma
Um golpe fortíssimo. Surdo. Som de ossos, gosma e o vapor do asfalto quente. Eu perdi a percepção do que acontecia ao redor, quando perdi a capacidade de sentir meu corpo.
Não que eu tenha entendido imediatamente.
Demorou um tempo - também perdi a capacidade de perceber o tempo - até que vi. Vi uma rodovia, um acidente terrível. Vi um caminhão de três eixos, enorme, bruto, vi uma roda de bicicleta que escapava debaixo da roda do motorista. Pensei várias vezes antes de ir ver, sabia que imagens impressionantes ficavam grudadas na minha cabeça, tipo aquele filme de terror argentino que até hoje me atormenta - a mina dançando com força feito pêndulo em cima da banheira. Tac, tac, tac, tac.
Mas fui ver.
Uma perna estava embaixo da roda e não tinha muitas chances de recuperação. Parecia uma massinha dessas de modelar, cor vermelha. Não parecia real. Estranhei a falta de emoção. Minha. Normalmente já estaria chorando e evitando, mas quis seguir. Vi um corpo, desconjuntado, quebrado, ossos saindo, sangue, vísceras, é essa a cor do cérebro? Um olho ali longe, tipo bola de gude.
Só que o corpo era meu. Era, tempo passado.
Estava. Só que sem os sentidos, sem o apêndice de um corpo; mental e emocional, eu, mas sem.
Como eu sigo vendo, se sei que já estou morta e que me falta, pelo menos, um olho? Me vejo, ou dirijo o que ainda interpreto como olhos ao que ainda imagino que seja um corpo, mas não posso, porque não tenho cabeça ou pescoço para dirigir qualquer coisa a qualquer lugar.
Percebo que vejo outras coisas, além de eu mesma despedaçada no chão. Mas onde estão todos os mortos? Um front-desk de atenção ao cliente? Onde ir? Como?
Começo a ver coisas bem do alto, bem do alto mesmo, mas... parece que posso fazer zoom.
Uau! Eu posso olhar para cima também! O que é aquilo, a Lua? Uma estrela? Muitíssimas estrelas! Será que posso fazer zoom nelas? Acho que ganhei um zoom infinito, uma capacidade de olhar profundamente qualquer coisa.
Se isso é verdade, eu ainda posso olhar para a Terra, mirar no horizonte lá longe e aproximar.
Vejo uma cidade pequena.
Casas baixas, uma janela. Dentro, uma família fala "amém" em uníssono, e dão a primeira garfada em um prato fumegante.
O olho que vê o espelho
Em um questionário que respondi recentemente, perguntavam com que personagem fictício eu me identificava. Sem pensar muito, respondi a Diane, de BoJack Horseman, escolha da qual estou bastante segura, mesmo sem nunca ter pensado nisso.
Acho que podemos começar com o fato de que eu tenha amado BoJack, a série. Poucas vezes uma série - ainda mais de animação - bateu tão fundo em mim. Demorei para vê-la - um ex-peguete/obsessão amava e eu queria distância de compartilhar qualquer paixão com o sujeito. Mas vi e foi um arrebato. Não me perguntem por que, não saberei explicar, mas sei dizer que Diane Nguyen é a grande responsável.
Alguns paralelos são bastante claros, outros nem tanto. Diane é uma escritora que tem problemas em encontrar sobre que escrever, e de tanto tentar escrever algo "importante" se bloqueia totalmente; é uma pessoa tida como inteligente, mas com qualidades sociais questionáveis; fica (casa!) com Mr. Peanutbutter, mesmo eles sendo completa e absolutamente diferentes; tem um viés de luta social que exerce, mas que sempre a deixa pesada. E as culpas, e a vontade de agradar, e o sempre aceitar BoJack, mesmo quando ele era infumável. Eu sofri muito por ela na fase em que fingia estar no Vietnã para não admitir que estava total e absolutamente perdida. Diane me fez sentir muitas coisas.
Outra personagem saltou quase imediatamente à mente, quando perguntaram em quem o olho via espelho, foi Alma Whittaker, do romance "A assinatura de todas as coisas", de Elizabeth Gilbert - que já passou por estas cartinhas em algum momento. Acho que posso afirmar com alguma segurança que é meu livro preferido (da última semana) e que relê-lo, não faz muito tempo atrás, me fez lembrar o porquê.
Alma não precisa vencer para existir plenamente, mas tem que percorrer um caminho longo para chegar até aí. É uma mulher curiosa, que gosta de observar, com paciência, no tempo dos musgos, que não busca a glória ou a fama, nem mesmo o reconhecimento; busca a descoberta, o entendimento, a compreensão - não dos outros, do mundo. É egoísta, tem uma preguiça imensa da manutenção de relações, prefere entender que se ninguém fala nada é porque está tudo bem. Promete coisas que não faz, não consegue ver - nem chega a buscar - todos os seus privilégios. Termina a história (e a vida) consigo mesma, fazendo as coisas ordinárias que lhe apaixonam, dividindo a vida com familiares que ama e com ela mesma e com tudo o que pensa. Acho, aqui para mim, que ela termina feliz.
Passei por Dária, da série da MTV. Por Lizzie Bennet? (levante suas sobrancelhas o máximo que puder). Todas eus, partes do meu espelho. Meu espelho ético e sabotador, curioso e reprimido, lúcido e cínico, perspicaz e julgador, meu espelho que almeja, mas tem preguiça, que quer mais liberdade que glória, que não deseja vencer, mas conhecer, criar, observar e seguir.